terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Segredo

Que hoje, sejamos mais do que fomos ontem. E que, amanhã, sejamos mais do que seremos hoje. E que, assim, consigamos ser mais e mais, até que a nossa jornada se finde e se complete para novamente recomeçar para todo o sempre. Esse é o propósito, esse é o sentido. É isso o que viemos fazer aqui e é isso o que estamos conseguindo fazer, cada um ao seu modo e na velocidade própria de cada ser humano.


Uma amiga complicada



“Letra, por que você é tão indecisa? Até parece que fica tentando enrolar a gente de tudo quanto é jeito. Nunca dá uma resposta precisa quando te faço uma pergunta qualquer. Por mais banal que seja a questão, você sempre termina interpretando o significado disso e daquilo. Eu queria que você fosse mais direta, mais exata. Sei lá, que não complicasse tanto as coisas”.
 O número já não aguentava mais a ambiguidade da amiga. Encontrava-se cansado das maçantes divagações que ela inevitavelmente conseguia inserir na prosa dos dois todas as vezes que eles se falavam. O que ele apreciava mesmo era um papo direto, sem rodeios e recheado de dados estatísticos. Um diálogo definido que não terminasse na insegurança de uma argumentação infindável. Para ele, isso sempre levava todo mundo a lugar nenhum.
Só que a letra, avoada como ela só, sequer conseguiu compreender toda a chateação do amigo em relação ao o seu modo viajante de ser. E então, mais uma vez e sem nem mesmo se tocar, acabou tentando direcionar aquele começo de conversa para o caminho que mais lhe parecia ser o correto.
 “Mas, número, como poderia eu ser mais direta se tudo aquilo que gosto de conversar só pode ser dito de uma maneira mais elaborada? Como falar das coisas do mundo e dos seres em geral secamente? Como interpretar o que acontece conosco no dia a dia, utilizando-me somente de matemática? É tudo muito profundo para ser aritmeticamente simplificado. Precisamos filosofar, só assim conseguiremos entender um pouquinho mais do que nos acontece nesta nossa existência”.
 “Tá vendo! Nem bem começamos a conversar e você já está conseguindo me desviar do meu foco de novo com esse seu papinho envolvente. Também, como você mesmo acabou de dizer, a gente só fala de coisas sobre as quais você gosta. Assim não dá! A senhorita é muito egoísta”.
 “Tudo bem, meu amigo número. Ultimamente, nós apenas temos conversado sobre assuntos do meu interesse mesmo. Você está coberto de razão e isso não está certo. Então, vamos lá, a respeito do que o senhor gostaria de prosear neste exato momento?”
 Apesar de reconhecer que nos últimos tempos não estava dando muita atenção para os temas de interesse do amigo, na realidade a letra detestava aquele papo carrancudo acerca do quanto a matemática agrega certeza e segurança às nossas vidas; aquela conversa a respeito das precisas equações e fórmulas que jamais transmitem indecisão ou mesmo qualquer ponta de dúvida para todos nós. Por isso, antes que o número começasse a dizer o que quer que fosse, a letra resolveu interrompê-lo lançando uma disputa para aquele companheiro de longa data. Assim, se acaso ela conseguisse vencer, poderia obrigá-lo a escutá-la sem reclamar de mais nada dali para frente.
Tomada de uma confiança exacerbada, a agora pretensiosa letra estava convencida de que se sagraria vencedora, pois o que tinha em mente, no seu modo de pensar, era um desafio impossível de ser decifrado.
 “Já sei, façamos desta forma: vamos duelar. Quem ganhar será obrigado daqui em diante a não mais criticar o outro. Além disso, quem perder terá que conversar numa boa sobre o que o outro quiser e quantas vezes o outro desejar. Topa?”
 “E no que consistiria esse duelo?” questionou o número um tanto quanto ressabiado.
 “Pensei no seguinte: nós dois teremos que propor um ao outro um problema qualquer e quem conseguir solucioná-lo satisfatoriamente será o vencedor.”
 “Combinado. Posso começar?”
 “Fique à vontade.” respondeu a letra com ares de sabichona.
  O número, que não era bobo nem nada, tinha em mente um enigma muito complicado que sem dúvida faria a letra ficar com cara de tacho. Era algo que ele já conhecia há algum tempo e que lhe havia sido proposto certa feita por um conhecido seu, o sentimento.
 “Pois bem! Considerando ambas as nossas áreas de conhecimento, eu gostaria que você me explicasse o porquê de o resultado da soma de um mais um ser dois. Na verdade, quero ver se a senhorita saberia interpretar essa singela operação aritmética de maneira aceitável, utilizando-se da sua sagaz capacidade de relativizar o ‘irrelativizável’.”
 “Uau! Pegou pesado, hein, amiga!”
A letra não tinha ideia por onde deveria começar e pediu um tempo para pensar. O número concordou e disse que não tinha pressa.
As horas se passaram e, nesse interregno, o número foi cuidar da vida. Já a letra, por sua vez, permaneceu sentada no mesmo banquinho onde já se encontrava. Estática, quase não respirava de tão concentrada.
À certa altura, gritou:
"Pronto!"
“Então, fala.”
E a letra iniciou o seu curto e truncado monólogo:
“A razão de o resultado de um mais um ser dois reside no fato de os números, e, com eles, a própria matemática, necessitarem de uma constante aprovação das demais coisas existentes no mundo, no sentido de se sentirem imprescindíveis para que a desordem não acabe imperando nessa nossa quimérica realidade vivenciada quotidianamente. Só que, a despeito dessa pretensa indispensabilidade, desconhecem a verdade absoluta de que tudo pode ser interpretado e relativizado, tal como o próprio resultado dessa adição.”
O número, agora boquiaberto e ostentando uma leve baba que saía da sua boca, fingiu entender tudo o que acabara de ser dito, mas não sem antes esboçar uma quase imperceptível reação de espanto.
“Meio confusa essa sua explicação, letra. Escreve para mim que tentarei entendê-la melhor. Antes disso, você já poderia me propor o seu problema que vou pensando em como desvendá-lo.”
A amiga estava radiante e se sentindo o máximo da inteligência diante da sua elaborada e complexa resposta. Igualmente ao número, ela era muito íntima do sentimento e dele um dia também já tinha ouvido uma charada, a qual pretendia transmitir ao amigo naquele instante:
“Quero que você equacione o amor. Que você o decifre através de uma equação matemática.”
O número disse nada; apenas fechou os olhos e começou a processar milhões de operações aritméticas dentro do seu cérebro, assim permanecendo durante umas duas horas. Enquanto isso, a letra escreveu em um pedaço de papel a sua resposta
à questão anterior e ficou parada no mesmo local onde já estava. Olhava fixamente para o amigo e tentava imaginar o que se passava dentro da cabeça dele.
Sem nada falar, o número pediu um pedaço de papel e uma caneta à amiga e escreveu a seguinte fórmula:
“Amor = atenção x (amizade + ou – sexo)2.”
Depois de entregar a anotação, ele pegou a resposta das mãos dela e os dois começaram a analisar o que fora escrito pelo outro.
Nada mais disseram, tudo continuou a ser como era antes dessa maluca conversa e ambos prosseguiram se completando mutuamente.